domingo, 20 de março de 2011

O poeta da pedra

 As lembranças sempre presentes e os momentos imortalizados nas páginas do autor transformaram a pedra em um ser vivo, estagnado, em contemplação dos anos que se passaram e só deixaram as memórias.

“As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão./ Mas as coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão.” Com mais de 100 anos de história, dezenas de livros publicados e uma referência eterna, Carlos Drummond de Andrade acompanhou a história de sua época, observando fatos, pessoas e o mundo através de sua obra.

O eterno obstáculo, a pedra, a ser transposta pela repetição, pela dança através das palavras e pela criação de sons entre os versos deformaram os textos. Mesmo sem rima, mesmo sem forma, mesmo sem nada do que vira antes, a pedra se fazia presente. Sim, sempre haveria uma pedra no meio do caminho. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”.

O poeta da pedra vai além, indeciso com o obstáculo a frente não poderia simplesmente desviar e seguir seu caminho? Não, era preciso parar, escrever sobre o assunto e chamar a atenção, pois não se tratava só de uma pedra que obstruía seu caminho, era aquele momento de reflexão, que todo ser humano se vê em uma situação complicada e embaraçosa, quando é preciso tomar uma decisão.

Sutil e delicado, com o humor mineiro e a contradição em poesia e prosa, o Drummond de Itabira espalha pelas páginas o doce e o salgado com uma pitada de graça. Derrama seus pensamentos nas superfícies antes brancas e imaculadas do tampo da mesa, no guardanapo de pano ou no papel do pão da padaria da esquina, libertando e celebrando a vida. Suas palavras não nascem amarradas, elas são livres para saltar e se dissolver, e são puras, largas e autênticas, como o poeta.




Com os olhos encharcados e baixos, os óculos cansados se pendurando na ponta do nariz comprido e a mão espremendo a testa, o homem esvazia o cérebro da melancólica bossa nova e da inspiração das musas, trazendo às suas obras o ar carioca. Porém, a tranqüilidade das frases, a brincadeira com o tempo e humor típico não deixaram longe o tempero mineiro.

O senhor do modernismo, nada mais é que um homem escrevendo sobre e para o homem. O riso e a lágrima estão sempre prontos para se manifestar e revelar o sentimento nas páginas. Providas de humanidade e individualidade, as obras tornam-se mais belas e únicas. Dentro de suas características, sua poesia e sua prosa se tornaram universais, e nada mais são do que humanas. Já que antes de tudo, Drummond foi um homem que nasceu, cresceu e aprendeu que “Amar se aprende amando”.

“O tempo passa? Não passa? No abismo do coração./ Lá dentro, perdura a graça/ do amor, florindo em canção (...)// Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida.// (...) E nosso amor, que brotou/ do tempo, não tem idade,/ pois só quem ama escutou/ o apelo da eternidade.”
Com as velhas e quase desconhecidas palavras, além das recém-criadas, Carlos Drummond de Andrade liga verso a verso, os passos de uma caminhada de volta ao passado na pequena cidade natal mineira e nos tempos inocentes e tranquilos da infância. Estes temas são recorrentes em sua poesia, as lembranças revividas com os olhos de um adulto em nostalgia transbordam “Nos áureos tempos”, “Retrato de família” e “Idade Madura”. Desaprendem-se as lições da infância, reabriando a ferida com a ideia de família, daqueles que já se foram e do pó que restou. O drama humano das lembranças, dos bons momentos que duraram tão pouco e permaneceram vivos, por vezes esquecidos, mas constantemente relembrados.

Com os olhos atentos, experientes e sensíveis, o escritor demonstra toda a simplicidade da vida, seja em uma rápida visita de uma borboleta ou em uma flor que quebra a rotina. “Uma flor nasceu na rua!/ (...) Uma flor ainda desbotada/ (...) Sua cor não se percebe./ Suas pétalas não se abrem./ (...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” Presença garantida, a flor, com suas pétalas enfeitam os poemas do mineiro e dominam os versos de Drummond, anunciando a chegada do poeta e sua “A Rosa do Povo” de 1945.
“(...) A rosa do povo despetala-se/ ou ainda conserva o pudor da/ alva?/ É um anúncio, um chamado, uma esperança embora/ frágil, pranto infantil no berço? (...) um peito de/ artista que incha/ e uma rosa se abre, um/ segredo comunica-se, o/ poeta anunciou/ o poeta, nas trevas, anunciou (...)”.
Conforme observou Iumma Maria Simon, autora do livro “Drummond: uma poética de risco”, a obra foi dividida entre a fidelidade à poesia e a necessidade de torná-la instrumento de luta e de participação nos acontecimentos de seu tempo.

Foi o que o poeta fez, contextualizando sua obra, inspirada nas dificuldades e inseguranças da época. O medo constante, nos anos da Segunda Guerra e nos Anos de Chumbo, a pobreza e a fome, transformaram até mesmo os vizinhos em ameaça. Tudo era resolvido de forma brutal e definitiva, como a “Morte do leiteiro”, o trabalhador confundido com ladrão. A competição e o racionamento de comida, o “perigo vermelho”, e o governo desprovido, deixaram nas ruas milhares de desempregados e as intermináveis filas do feijão, que só fizeram aumentar as incertezas do futuro.

“Em verdade temos medo (...)/ E fomos educados para o medo. (...)/ Fiquei com medo de ti/ meu companheiro moreno./ De nós, de vós; e de tudo. / Estou com medo da honra.// (...) Por que morrer em conjunto?/ E se todos nós vivêssemos? (...)”
Sua prosa ritmada também não deixa para trás estes assuntos, em “Proibido fumar”, tudo se justificava em defesa dos direitos de liberdade ou defesa da pátria. A correria da cidade grande e a descrença no homem formaram “O medo e o relógio” e “Os homens são anjos?”, crônicas de assaltos, fobias e pessoas. No entanto, Carlos Drummond demonstra todo o seu amor pela humanidade como a destemida moça distinta que defende seus direitos de igualdade com um guarda civil, em “A moça deitada na grama” ou as surpresas que o romantismo pode trazer para o cotidiano entendiante em “Declaração de amor em outdoor”.

O infalível humor não poderia estar de fora nas palavras proseadas, nas brincadeiras com os costumes e hábitos dos homens contemporâneos que não sabem escutar, mas falam mesmo assim em “Ah, essa história de diálogo”. Não nos falta a saudosa presença de seu amigo e companheiro João Brandão que em muitos textos se apresenta como fiel personagem. Em a “Gota com humor”, as doenças de Brandão são tratadas com um novo olhar.

Ao fechar os livros para descansar os olhos depois de algumas páginas lidas, os sentidos se apuram e é possível ouvir um grito de verdade, um suspiro de angústia e um toque de dor. Porém, as sensações vão mais além, cada tema é uma reflexão e uma viagem, como a busca incessante pela prosa e pela poesia. O grande amor de Drummond pela língua se observa com a contemplação mais apurada das faces e significados das palavras.

Mais de perto, as mil faces secretas se tornam visíveis, mas cheias “(...) de melodia e conceito/ elas se refugiam na noite, as palavras./ ainda úmidas e impregnadas de sono,/ rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”As obras que nunca cansam, têm estilo e personalidade próprias, vagando entre os assuntos do cotidiano. Passear pelos seus poemas e crônicas até poder enxergar, sentir a história e os sentimentos, saboreando o prazer dos acontecimentos. Curtos e grossos, longos e disformes, suas criações não buscam rimas óbvias, não se limitam a elas, só seguem o pensamento de um poeta acostumado a viver em versos.