sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Perdido no jardim

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 4

Seguir os passos de Anchieta talvez seja mais fácil do que encontrar informações sobre a localização exata de seus monumentos. Pude comprovar isso quando estive em Santos, sob o calor intenso, o cansaço e a fome gritante, busquei desesperadamente por algum sinal divino que indicasse o tão esperado i de informação.

Com a certeza da credibilidade de minha fonte, fui para a ponta da praia, na Praça do Aquário. Encantada com tantas atrações seja natural ou criada pelo homem, me perdi entre fotos, quadros, flores, peixes, performances de uma estátua viva e as cenas curiosas das pessoas que acendiam velas aos pés de estátua de Cristo, afinal de contas, estávamos no feriado de Finados. E eu esqueci completamente o verdadeiro objetivo de estar naquele lugar.

No meio do caminho para outro destino turístico da cidade, estanquei na rua. Meu Deus, o Padre Anchieta! Minha companheira de viagem suspirou e girou os calcanhares. “Vamos pedir informação. Não estamos longe, alguém por aqui deve saber onde fica exatamente a estátua”.

Alguém deveria saber. Para cada um que perguntamos o braço apontava para direções completamente diferentes. Seguir em frente, voltar ou pegar um ônibus para chegar a lugar nenhum. Por falta de opções voltamos ao Aquário, onde encontramos um guichê de informação tão discreto e mal sinalizado que se confundia com a bilheteria da atração.

Dez, quinze, talvez vinte minutos esperando o atendente procurar em pastas de arquivos, perguntar para moça ao lado, até se render a internet. “Vocês estão com pressa?” Precisei me conter para não dizer que tinha rodado uns 90 km só para ver o monumento. Enfim, o rapaz nos disse que era só dar a volta, a estátua estava do outro lado do Aquário. Pensei que ele talvez nunca tivesse saído d guichê. E todos deviam estar se perguntando o que duas garotas faziam com um mapa de Santos em espanhol, procurando um monumento.



 
O problema é que já tínhamos estado do outro lado da praça e a única estátua que vimos foi de um pescador. “Não, é depois do pescador, siga em frente. É no fim da praça”. Pobre Padre Anchieta! No fim da praça. Ninguém chegava até lá, talvez alguns ciclistas ousassem virar a cabeça na curva da ciclovia e admirar personagem em cena tão admirável.

Idealizado para a comemoração do IV Centenário da morte de Anchieta, a imagem foi inaugurada em 25 de janeiro de 1961 e... Não. A estátua estava esquecida, espremida entre carros, bicicletas, edifícios, em frente ao mar, isolada em um pedaço do jardim.

De todas as outras cenas que presenciei com o personagem, aquela era uma das mais belas que me fazia lembrar parte da citação do Livro de Marcos que vi em Itanhaém “pregai o evangelho a toda criatura”. Com uma enorme cruz atrás de si, Anchieta tem os olhos voltados para o céu. A sua frente, prontos para receber os ensinamentos, um índio e uma onça. Nativos, selvagens, europeus ou animais, todos deveriam receber o mesmo tratamento.

Mesmo sem o público amplo, Anchieta continua a pregar para seu índio e sua onça no fim da Praça do Aquário. Porém, ali esquecido, ele se tornou só mais um monumento dentre tantos outros que enfeitam as praças e os jardins de Santos. E que ninguém sabe quem era ou o que fez.

Entre a fé e o turismo

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 3

“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16-15). Entre muitas citações da bíblia pregadas nas paredes do Convento de Nossa Senhora da Conceição, talvez esta seja a que mais se aproxima dos desígnios de Anchieta.

Para visitar a cidade no meio de um feriado é preciso muita paciência, já que todos os lugares estão lotados, mas estes dias sazonais também nos reservam grandes surpresas. Em busca dos caminhos de Anchieta, em Itanhaém, acabei encontrando índios, vestidos como reza a tradição e nossa imaginação, dançando e tocando flautas na Praça da Igreja Matriz de Sant’ Anna, a promover seus CD’s e sua arte. O mesmo local, onde há séculos, o padre andarilho pregava para nativos e portugueses.

Em suas andanças, Anchieta seguia muito para a vila de Itanhaém, fundada em 22 de abril de 1532 por Martin Afonso de Souza. Era na igreja da cidade, que ele costumava rezar as missas diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição. Sua fé na santa era tão grande, que posteriormente ela passou a ser também conhecida como a Virgem de Anchieta. A imagem, hoje, abençoa a entrada da Igreja Matriz.

Lá e novamente, esculpida em bronze por Luiz Morrone em 1945 do padre está na praça. Crianças vêm abraçá-lo perguntado para seus pais, que riem de suas inocências, se este é de verdade. Ninguém que passe pela praça deixa de olhar, ou registrar em uma foto, a imagem daquele que teve tanta influência para a propagação dos ensinamentos católicos.



Com um crucifixo preso a cintura, um livro de baixo do braço, uma inscrição “não preciso dizer quem sou” e uma expressão séria, me perguntei, ao me deparar com a escultura, se este realmente era o padre que procurava retratado tantas vezes pela humildade e o semblante sereno. Porém, nesta imagem, ele estava caminhando com o passo reto e forte, de alguém que sabe exatamente aonde quer chegar, e talvez uma expressão sorridente não combinasse com um personagem tão determinado em sua caminhada, foi então que resolvi continuar a minha.

Subindo a ladeira que dá no Convento, se pode admirar a Igreja e toda a praça do Centro Histórico da cidade. E do alto de uma das janelas da capela, observar a parte original de uma construção secular, ao som da música dos Beatles “Let be”, tocada pelas flautas dos índios na praça, é como sentir de perto o choque cultural da modernidade e ao mesmo tempo, viajar de volta ao passado.

Juntamente com a fundação de Itanhaém, em 1533 foi construída no Morro, uma ermida em honra de Nossa Senhora da Conceição, um dos mais antigos santuários do Brasil, o qual serviu de Matriz até depois de 1639. Durante muitos anos, entre idas e vindas, o local foi comandado por franciscanos, tanto que um deles, o frei Miguel, iniciou a atual construção em 1699 e concluída em 1713.

Pouco mais de cem anos depois, grande parte do convento foi destruída por um incêndio, conta a história, que um frei irresponsável com um facho inflamado fazia guerra com os morcegos e foi o causador do acidente. Entre restaurações e falta de recursos os franciscanos deixam o convento em 1971 aos cuidados das Servas de Jesus Sacerdote, assumindo elas toda a responsabilidade pelo patrimônio.

Representadas em quadros e retratos, as imagens de Padre Anchieta, mostram a devoção do lugar, com uma mistura de fé e mistérios que o cercam. Nunca se sabe exatamente o que vamos encontrar ao abrir a porta, ou ao subir mais um lance de escada.

A questão mais perturbadora é de como um pelourinho, que conserva algumas correntes, foi parar dentro de um convento, e como um lugar sagrado pode ser tão carregado e ao mesmo tempo tão fascinante. As placas indicam que o pelourinho era usado em 1561 na praça da cidade e que em 1971 foi encontrado dentro do santuário e remontado no local.

Com os olhos curiosos e até intrometidos, me pergunto, algumas vezes, se poderia mesmo estar ali, abrir aquela porta ou entrar naquele quarto. Em outras partes, principalmente as externas, as paredes em ruínas, tomadas pelas plantas, pelas flores tímidas e pelas árvores frondosas e antigas deram um ar de jardim secreto. ­O cenário descoberto foi triunfante.

Os caminhos de Anchieta de Itanhaém saem do centro histórico e seguem para a praia onde está localizada a Passarela de Anchieta, que conta as datas das partes mais importantes de sua vida, ligando a Praia dos Sonhos a Praia da Gruta.

No final do percurso está a Cama de Anchieta, onde conta-se que o jesuíta ali descansava e refletia. Para Padre Anchieta o que resta é ser a atração turística e aguardar humildemente que alguém o reconheça mais do que um padre importante, procurando saber sua verdadeira história. Enquanto isso, placas e monumentos se deterioram e são atacados por vândalos, como as pichações nas rochas que formam a Cama de Anchieta.

Centenas de pessoas passam pelo local, alguns param e se ajoelham dentro da gruta em sinal de fé, em frente à imagem de Nossa Senhora de Lourdes. Deixando ali, seus pedidos, agradecimentos e oferendas. Outros animados continuam a caminhada.

Da passagem de madeira cheia de turistas observei de longe os painéis montados nos reservatórios da Sabesp, que retratam cenas da vida do jesuíta em meio aos índios ou escrevendo o poema da Virgem nas areias da praia. Como chegar até eles e conseguir uma perspectiva melhor era o grande problema.

Nas barraquinhas de ambulantes que se aglomeram no início da passagem aproveitando o movimento do local, fui informada que as únicas formas de subir eram por uma rua lateral abandonada ou por uma trilha bem visível a todos, porém íngreme, lamacenta e sem nenhum apoio para as mãos. Qualquer tropeço, e eu rolaria morro a baixo.

A trilha não era convidativa para alguém desastrada e sozinha, mas a forma mais 'segura' de chegar perto dos painéis era subir o morro dos Paranambuco. Porém, tudo compensa, até as manchas no tênis branco, quando me lembrei da célebre frase que diz que um bom jornalista se conhece pela sola dos sapatos.

As dificuldades da subida compensam depois de admirar do alto, toda a extensão dos 220 metros de comprimento por 1,60 de largura da Passagem de Anchieta que contorna as rochas, bem próximas do mar de ondas bravas. De cima, a dimensão dos painéis se torna visível e o local que mistura fé, história e turismo parece perfeito.

Do Povo para o Povo


A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 2

As praças. Parece o melhor lugar para abrigar eternamente um personagem tão ligado ao povo. São em lugares assim, movimentados, cheios de pessoas, risadas, carros, que estão instalados os monumentos em homenagem ao jesuíta. Estátuas que observam atentas, tudo o que acontece ao redor com os olhos sábios de quem carrega a história e se adapta às mudanças.

Sob a luz fraca de um entardecer, Anchieta escreve permanentemente na areia a mensagem “Só a heróis se compete tanta glória”, permanecendo assim em uma das poses mais conhecidas de sua biografia, quando na praia de Iperog escreveu na areia o Poema à Virgem, que só depois foi transcrito.

Dessa forma, ele acompanha o crescimento da movimentada São Vicente, sua tão amada vila, aonde chegou em 1553 e permaneceu por muitos anos. Em tamanho natural, feito de fibra de vidro, ele foi colocado na praça junto a Biquinha de Anchieta, existente desde sua chegada e que foi uma das principais fontes de água da população vicentina durante séculos.

Lá, o jesuíta se voltou ao povo mais simples e explicou por meio do teatro, a essência dos ensinamentos cristãos. Atualmente, é o ponto turístico mais conhecido e visitado da cidade, localizado próximo de onde estava o Colégio de São Vicente.



A Capitania foi o palco de um de seus mais famosos autos, o Auto da Pregação Universal. Ele foi encenado pela primeira vez no Natal de 1561, mas só em 1576 é que a apresentação chegou até São Vicente. Conta-se que no dia uma forte tempestade se aproximava, ameaçando a encenação do auto, prometendo Anchieta que a chuva não cairia. A promessa se cumpriu e a apresentação durou três horas sem nenhuma gota chuva.

Outros textos foram criados, usando o recurso de representações artísticas e teatrais, pois traziam para a catequese a oportunidade de aumentar o interesse dos índios, já que os autos representavam cenas do cotidiano. Além de aproveitar os rituais praticados pelos indígenas, acrescentando a eles referências às festas cristãs.

Um dos temas centrais do Auto da Pregação Universal, com o diálogo entre os demônios, representa bem os rituais das tribos que temiam os espíritos malignos que perturbavam os nativos na floresta.

Porém, não coube à Anchieta somente o teatro, um de seus trabalhos mais admirados e utilizados como base de estudo até os dias atuais é a Gramática da Língua mais Falada no Brasil. Na obra, ele faz uma pesquisa aprofundada sobre o tupi, no entanto como mostra um trecho de uma carta escrita em 31 de maio de 1560, o padre não tinha noção da repercussão e nem da contribuição que estava fazendo.

“Quanto à língua, eu estou nela algum tanto adiante, ainda que é muito pouco para o que soubera, se me não ocuparam em ensinar gramática. Todavia, tenho toda a maneira dela por arte, e para mim tenho entendido quase todo o modo dela. Não a ponho em arte porque não há a quem aproveite. Somente aproveito-me eu dela, e aproveitar-se-ão os que de lá vierem, que souberem gramática”.