segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

À espera de um milagre

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 6

Seguindo por um caminho desconhecido e longo, passo por rios e atravesso pontes, lá fora a cidade movimentada se transforma em mata fechada, salvo por algumas ruas e casas que aparecem de vez em quando. Para chegar até a única Paróquia do Beato José de Anchieta na Região, fundada em 1994 vou até a Área Continental de São Vicente, no bairro do Humaitá.

Novamente me deparo diante da paróquia, com uma escultura de Anchieta, com a onça aos seus pés e o índio ao seu lado, representando a época e a terra selvagem onde os missionários trabalhavam. À espera do pároco, sigo para a igreja vazia, tomada pelo silêncio profundo e pela luz fraca que entra pelas janelas. A construção é simples, mas a delicadeza do altar feito em mosaico de azulejos pequenos dá o toque único e original ao local.

Padre Aloísio Antônio da Silva me recebe já com um material separado, afinal não é a primeira vez que querem fazer uma reportagem sobre o assunto. Assim, acabo recebendo de presente um livreto criado em comemoração aos 25 anos da beatificação de Padre José de Anchieta, o título é interessante: O Padre Anchieta está à sua espera! Mas, depois de conversar com o pároco percebo que na verdade, todos estão à espera de um milagre, até mesmo Anchieta.

“Estamos rezando sempre com todos os fiéis para que mais um milagre seja alcançado e seja reconhecido pela Igreja, para que assim o nosso beato se torne santo”, conta Padre Aloísio. Com fiéis da própria comunidade, a Paróquia realiza novenas e eventos no bairro como uma forma de divulgar a santidade do jesuíta, já que a parte mais conhecida de Anchieta está voltada à cultura, ao turismo e à história.

Há dez anos comandando a Paróquia, Padre Aloísio acredita que o processo de canonização do jesuíta está sendo feito, mas encontra muita dificuldade, já que a obra de evangelização veio para o Brasil com a cruz e a espada.

Houve muitas mortes de índios e guerras numa época completamente selvagem, com missionários e conquistadores trabalhando juntos. “O problema é que perguntam ao Anchieta: você estava no meio de tudo isso e o que fez? Por causa disso, a obra dos jesuítas é tão criticada e a santificação de Anchieta vista tão negativamente”, explica o pároco.

Entre pausas e reflexões, Padre Aloísio confessa que muitos missionários superiores à Anchieta tinham uma visão dominadora e ambiciosa, mas lembra que com o passar do tempo ele acabou rompendo com essa ordem, indo viver entre os índios durante muito tempo, para que assim pudesse continuar sua missão.

Para a pequena igreja e sua comunidade, Padre Anchieta já é considerado um santo, e em passos lentos e discretos tenta buscar uma visibilidade maior para o beato, espalhando o processo de canonização aos quatro ventos e rezando para que os pedidos sejam atendidos.

Só mais uma pedra

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região


Parte 5

Uma notícia velha de um jornal local em sua versão online, uma pequena nota sem foto me chamou a atenção. A matéria era de janeiro de 2006 e uma pedra fundamental tinha sido inaugurada em um terreno na Vila Mirim, Praia Grande, local onde se tornaria em quatro anos um grande Santuário ao Padre Anchieta.

Quatro anos depois nos levaria exatamente a 2010 e onde estaria o Santuário?

Não precisei de grandes esforços para encontrar o projeto “Caminhos de Anchieta” de autoria da AGEM (Agência Metropolitana da Baixada Santista), da CANAN (Associação Pró-canonização de Anchieta), do CONDESB (Conselho de Desenvolvimento da Baixada Santista) e da Secretaria de Estado de Turismo.

Logo no início do documento é apresentado o objetivo do projeto que procura resgatar o turismo religioso na Região, contribuindo para o processo de canonização do Padre Anchieta, possibilitando o desenvolvimento social e econômico, com a geração de empregos.

O Santuário em Praia Grande seria o ponto central de rotas de peregrinação em todo o litoral paulista, refazendo os passos da vida e obra de Anchieta por meio de atrativos históricos, naturais ou construídos. No local ainda seria criado um Centro de Estudos, reunindo todas as obras sobre o assunto.
Abandonado, mas oficialmente adiado o “Caminhos de Anchieta” foi vítima da burocracia e da falta de envolvimento em questões metropolitanas. É o que deixou claro a arquiteta e diretora técnica III da AGEM, Tamara Gakiya, “o projeto do santuário ficou parado depois da mudança da diretoria, houve um conflito de interesses. Para que ele seja reativado é preciso o envolvimento de muito mais gente, não somente da Agência, como também da Secretaria de Turismo do Estado e da Prefeitura de Praia Grande”.
Mesmo que alguns tenham desistido, outros ainda seguem acompanhando o assunto. Tamara acrescenta que a AGEM ainda vem participando de reuniões promovidas pela Associação Pró-canonização de Anchieta (CANAN), com sede em São Paulo, mas não sabe dizer em que pé estão as discussões.
O projeto era fantástico e talvez perfeito de mais, afinal, quando a esmola é demais o santo desconfia. Por enquanto, a pedra fundamental inaugurada se tornou só mais uma em meio ao mato do terreno esquecido.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Perdido no jardim

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 4

Seguir os passos de Anchieta talvez seja mais fácil do que encontrar informações sobre a localização exata de seus monumentos. Pude comprovar isso quando estive em Santos, sob o calor intenso, o cansaço e a fome gritante, busquei desesperadamente por algum sinal divino que indicasse o tão esperado i de informação.

Com a certeza da credibilidade de minha fonte, fui para a ponta da praia, na Praça do Aquário. Encantada com tantas atrações seja natural ou criada pelo homem, me perdi entre fotos, quadros, flores, peixes, performances de uma estátua viva e as cenas curiosas das pessoas que acendiam velas aos pés de estátua de Cristo, afinal de contas, estávamos no feriado de Finados. E eu esqueci completamente o verdadeiro objetivo de estar naquele lugar.

No meio do caminho para outro destino turístico da cidade, estanquei na rua. Meu Deus, o Padre Anchieta! Minha companheira de viagem suspirou e girou os calcanhares. “Vamos pedir informação. Não estamos longe, alguém por aqui deve saber onde fica exatamente a estátua”.

Alguém deveria saber. Para cada um que perguntamos o braço apontava para direções completamente diferentes. Seguir em frente, voltar ou pegar um ônibus para chegar a lugar nenhum. Por falta de opções voltamos ao Aquário, onde encontramos um guichê de informação tão discreto e mal sinalizado que se confundia com a bilheteria da atração.

Dez, quinze, talvez vinte minutos esperando o atendente procurar em pastas de arquivos, perguntar para moça ao lado, até se render a internet. “Vocês estão com pressa?” Precisei me conter para não dizer que tinha rodado uns 90 km só para ver o monumento. Enfim, o rapaz nos disse que era só dar a volta, a estátua estava do outro lado do Aquário. Pensei que ele talvez nunca tivesse saído d guichê. E todos deviam estar se perguntando o que duas garotas faziam com um mapa de Santos em espanhol, procurando um monumento.



 
O problema é que já tínhamos estado do outro lado da praça e a única estátua que vimos foi de um pescador. “Não, é depois do pescador, siga em frente. É no fim da praça”. Pobre Padre Anchieta! No fim da praça. Ninguém chegava até lá, talvez alguns ciclistas ousassem virar a cabeça na curva da ciclovia e admirar personagem em cena tão admirável.

Idealizado para a comemoração do IV Centenário da morte de Anchieta, a imagem foi inaugurada em 25 de janeiro de 1961 e... Não. A estátua estava esquecida, espremida entre carros, bicicletas, edifícios, em frente ao mar, isolada em um pedaço do jardim.

De todas as outras cenas que presenciei com o personagem, aquela era uma das mais belas que me fazia lembrar parte da citação do Livro de Marcos que vi em Itanhaém “pregai o evangelho a toda criatura”. Com uma enorme cruz atrás de si, Anchieta tem os olhos voltados para o céu. A sua frente, prontos para receber os ensinamentos, um índio e uma onça. Nativos, selvagens, europeus ou animais, todos deveriam receber o mesmo tratamento.

Mesmo sem o público amplo, Anchieta continua a pregar para seu índio e sua onça no fim da Praça do Aquário. Porém, ali esquecido, ele se tornou só mais um monumento dentre tantos outros que enfeitam as praças e os jardins de Santos. E que ninguém sabe quem era ou o que fez.

Entre a fé e o turismo

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 3

“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16-15). Entre muitas citações da bíblia pregadas nas paredes do Convento de Nossa Senhora da Conceição, talvez esta seja a que mais se aproxima dos desígnios de Anchieta.

Para visitar a cidade no meio de um feriado é preciso muita paciência, já que todos os lugares estão lotados, mas estes dias sazonais também nos reservam grandes surpresas. Em busca dos caminhos de Anchieta, em Itanhaém, acabei encontrando índios, vestidos como reza a tradição e nossa imaginação, dançando e tocando flautas na Praça da Igreja Matriz de Sant’ Anna, a promover seus CD’s e sua arte. O mesmo local, onde há séculos, o padre andarilho pregava para nativos e portugueses.

Em suas andanças, Anchieta seguia muito para a vila de Itanhaém, fundada em 22 de abril de 1532 por Martin Afonso de Souza. Era na igreja da cidade, que ele costumava rezar as missas diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição. Sua fé na santa era tão grande, que posteriormente ela passou a ser também conhecida como a Virgem de Anchieta. A imagem, hoje, abençoa a entrada da Igreja Matriz.

Lá e novamente, esculpida em bronze por Luiz Morrone em 1945 do padre está na praça. Crianças vêm abraçá-lo perguntado para seus pais, que riem de suas inocências, se este é de verdade. Ninguém que passe pela praça deixa de olhar, ou registrar em uma foto, a imagem daquele que teve tanta influência para a propagação dos ensinamentos católicos.



Com um crucifixo preso a cintura, um livro de baixo do braço, uma inscrição “não preciso dizer quem sou” e uma expressão séria, me perguntei, ao me deparar com a escultura, se este realmente era o padre que procurava retratado tantas vezes pela humildade e o semblante sereno. Porém, nesta imagem, ele estava caminhando com o passo reto e forte, de alguém que sabe exatamente aonde quer chegar, e talvez uma expressão sorridente não combinasse com um personagem tão determinado em sua caminhada, foi então que resolvi continuar a minha.

Subindo a ladeira que dá no Convento, se pode admirar a Igreja e toda a praça do Centro Histórico da cidade. E do alto de uma das janelas da capela, observar a parte original de uma construção secular, ao som da música dos Beatles “Let be”, tocada pelas flautas dos índios na praça, é como sentir de perto o choque cultural da modernidade e ao mesmo tempo, viajar de volta ao passado.

Juntamente com a fundação de Itanhaém, em 1533 foi construída no Morro, uma ermida em honra de Nossa Senhora da Conceição, um dos mais antigos santuários do Brasil, o qual serviu de Matriz até depois de 1639. Durante muitos anos, entre idas e vindas, o local foi comandado por franciscanos, tanto que um deles, o frei Miguel, iniciou a atual construção em 1699 e concluída em 1713.

Pouco mais de cem anos depois, grande parte do convento foi destruída por um incêndio, conta a história, que um frei irresponsável com um facho inflamado fazia guerra com os morcegos e foi o causador do acidente. Entre restaurações e falta de recursos os franciscanos deixam o convento em 1971 aos cuidados das Servas de Jesus Sacerdote, assumindo elas toda a responsabilidade pelo patrimônio.

Representadas em quadros e retratos, as imagens de Padre Anchieta, mostram a devoção do lugar, com uma mistura de fé e mistérios que o cercam. Nunca se sabe exatamente o que vamos encontrar ao abrir a porta, ou ao subir mais um lance de escada.

A questão mais perturbadora é de como um pelourinho, que conserva algumas correntes, foi parar dentro de um convento, e como um lugar sagrado pode ser tão carregado e ao mesmo tempo tão fascinante. As placas indicam que o pelourinho era usado em 1561 na praça da cidade e que em 1971 foi encontrado dentro do santuário e remontado no local.

Com os olhos curiosos e até intrometidos, me pergunto, algumas vezes, se poderia mesmo estar ali, abrir aquela porta ou entrar naquele quarto. Em outras partes, principalmente as externas, as paredes em ruínas, tomadas pelas plantas, pelas flores tímidas e pelas árvores frondosas e antigas deram um ar de jardim secreto. ­O cenário descoberto foi triunfante.

Os caminhos de Anchieta de Itanhaém saem do centro histórico e seguem para a praia onde está localizada a Passarela de Anchieta, que conta as datas das partes mais importantes de sua vida, ligando a Praia dos Sonhos a Praia da Gruta.

No final do percurso está a Cama de Anchieta, onde conta-se que o jesuíta ali descansava e refletia. Para Padre Anchieta o que resta é ser a atração turística e aguardar humildemente que alguém o reconheça mais do que um padre importante, procurando saber sua verdadeira história. Enquanto isso, placas e monumentos se deterioram e são atacados por vândalos, como as pichações nas rochas que formam a Cama de Anchieta.

Centenas de pessoas passam pelo local, alguns param e se ajoelham dentro da gruta em sinal de fé, em frente à imagem de Nossa Senhora de Lourdes. Deixando ali, seus pedidos, agradecimentos e oferendas. Outros animados continuam a caminhada.

Da passagem de madeira cheia de turistas observei de longe os painéis montados nos reservatórios da Sabesp, que retratam cenas da vida do jesuíta em meio aos índios ou escrevendo o poema da Virgem nas areias da praia. Como chegar até eles e conseguir uma perspectiva melhor era o grande problema.

Nas barraquinhas de ambulantes que se aglomeram no início da passagem aproveitando o movimento do local, fui informada que as únicas formas de subir eram por uma rua lateral abandonada ou por uma trilha bem visível a todos, porém íngreme, lamacenta e sem nenhum apoio para as mãos. Qualquer tropeço, e eu rolaria morro a baixo.

A trilha não era convidativa para alguém desastrada e sozinha, mas a forma mais 'segura' de chegar perto dos painéis era subir o morro dos Paranambuco. Porém, tudo compensa, até as manchas no tênis branco, quando me lembrei da célebre frase que diz que um bom jornalista se conhece pela sola dos sapatos.

As dificuldades da subida compensam depois de admirar do alto, toda a extensão dos 220 metros de comprimento por 1,60 de largura da Passagem de Anchieta que contorna as rochas, bem próximas do mar de ondas bravas. De cima, a dimensão dos painéis se torna visível e o local que mistura fé, história e turismo parece perfeito.

Do Povo para o Povo


A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 2

As praças. Parece o melhor lugar para abrigar eternamente um personagem tão ligado ao povo. São em lugares assim, movimentados, cheios de pessoas, risadas, carros, que estão instalados os monumentos em homenagem ao jesuíta. Estátuas que observam atentas, tudo o que acontece ao redor com os olhos sábios de quem carrega a história e se adapta às mudanças.

Sob a luz fraca de um entardecer, Anchieta escreve permanentemente na areia a mensagem “Só a heróis se compete tanta glória”, permanecendo assim em uma das poses mais conhecidas de sua biografia, quando na praia de Iperog escreveu na areia o Poema à Virgem, que só depois foi transcrito.

Dessa forma, ele acompanha o crescimento da movimentada São Vicente, sua tão amada vila, aonde chegou em 1553 e permaneceu por muitos anos. Em tamanho natural, feito de fibra de vidro, ele foi colocado na praça junto a Biquinha de Anchieta, existente desde sua chegada e que foi uma das principais fontes de água da população vicentina durante séculos.

Lá, o jesuíta se voltou ao povo mais simples e explicou por meio do teatro, a essência dos ensinamentos cristãos. Atualmente, é o ponto turístico mais conhecido e visitado da cidade, localizado próximo de onde estava o Colégio de São Vicente.



A Capitania foi o palco de um de seus mais famosos autos, o Auto da Pregação Universal. Ele foi encenado pela primeira vez no Natal de 1561, mas só em 1576 é que a apresentação chegou até São Vicente. Conta-se que no dia uma forte tempestade se aproximava, ameaçando a encenação do auto, prometendo Anchieta que a chuva não cairia. A promessa se cumpriu e a apresentação durou três horas sem nenhuma gota chuva.

Outros textos foram criados, usando o recurso de representações artísticas e teatrais, pois traziam para a catequese a oportunidade de aumentar o interesse dos índios, já que os autos representavam cenas do cotidiano. Além de aproveitar os rituais praticados pelos indígenas, acrescentando a eles referências às festas cristãs.

Um dos temas centrais do Auto da Pregação Universal, com o diálogo entre os demônios, representa bem os rituais das tribos que temiam os espíritos malignos que perturbavam os nativos na floresta.

Porém, não coube à Anchieta somente o teatro, um de seus trabalhos mais admirados e utilizados como base de estudo até os dias atuais é a Gramática da Língua mais Falada no Brasil. Na obra, ele faz uma pesquisa aprofundada sobre o tupi, no entanto como mostra um trecho de uma carta escrita em 31 de maio de 1560, o padre não tinha noção da repercussão e nem da contribuição que estava fazendo.

“Quanto à língua, eu estou nela algum tanto adiante, ainda que é muito pouco para o que soubera, se me não ocuparam em ensinar gramática. Todavia, tenho toda a maneira dela por arte, e para mim tenho entendido quase todo o modo dela. Não a ponho em arte porque não há a quem aproveite. Somente aproveito-me eu dela, e aproveitar-se-ão os que de lá vierem, que souberem gramática”.

domingo, 15 de maio de 2011

Pegadas na Areia

A história de um padre andarilho e suas marcas deixadas na Região

Parte 1

Sentada no chão da biblioteca e perdida em meio a livros de páginas amareladas e cheirando a mofo, busco informações soltas em cartas ou documentos, que se tornam peças de um quebra-cabeça histórico. Cada peça encontrada, completa o trajeto percorrido de um deles, a partir de pegadas deixadas através dos séculos, é o desafio encarado.

Atravessar várias cidades em um mesmo dia, já não é nenhum novidade para quem mora em Peruíbe, trabalha em São Vicente e estuda em Santos. Ver a Região pela janela de um ônibus ou de um carro, cruzando uma rodovia asfaltada e duplicada tem lá suas vantagens. Porém, fazer o mesmo caminho, a pé dentro de uma mata fechada e selvagem, é outra história. Talvez, a história de um padre.

Em meio à selva, os pés velozes e descalços do jovem jesuíta, nascido a 19 de março de 1534, em Tenerife, uma das Ilhas Canárias dominadas pela Espanha, percorreram o litoral brasileiro, espalhando os ensinamentos cristãos e absorvendo a cultura indígena. José de Anchieta abriu seu próprio caminho no meio da mata, subindo a muralha que conhecemos como a Serra do Mar.


O padre, considerado precursor da cultura brasileira, ensinou por meio do teatro e da poesia, índios e portugueses, além de aprender a medicina dos nativos. Para produzir sua obra que sobrevive até hoje, Anchieta escolheu o espanhol, o português e o tupi.

Os pés do padre, do mestre e do padre, deixaram marcas por onde passou. Entre os sertões de Itanhaém e as serras de Paranapiacaba, o jesuíta construiu colégios, converteu nativos, ajudou a fundar as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, e a criar o que definimos por Costa da Mata Atlântica. Seu caminho é eternizado pelos monumentos que foram erguidos para lembrar sua passagem e influência na Região.

Seu trabalho foi admirado por alguns escritores, que acabaram se tornando biógrafos de sua vida, como o professor, conferencista e historiador Padre Hélio Abranches Vioti. Em sua obra descreve que a vida de Anchieta foi vivida "em favor da elevação intelectual, moral e religiosa". Outro escritor católico, o Padre Armando Cardoso, autor do livro "O Bem-Aventurado Anchieta", considera que o padre "tornou-se o símbolo da educação cristã e continua a ser um estímulo para todos os que trabalham na formação da juventude."

Não foram apenas padres que prestaram homenagem à Anchieta, contemporâneos ou históricos escritores não se abstiveram de reverenciar a obra e o personagem histórico. O conhecido escritor e jornalista Euclides da Cunha escreveu: "(A Companhia de Jesus) Ligou à humanidade, emergente da agitação fecunda da Idade Média, um povo inteiro - espíritos jungidos a um fetichismo deprimente, forças perdidas nas correrias guerreiras dos sertões...E para esta empresa imensa teve entre nós uma alma simples, sem violentos ímpetos de heroicidade - amplíssima e casta - iluminada pela irradiação serena do ideal."

Mais próximo do nosso tempo, Cecília Meireles criou um poema contando a história do padre jesuíta, o trecho mostra o envolvimento e comprometimento de Anchieta com os fundamentos cristãos. "Vede Anchietá, o santo, / a tratar de chagas, / a enxugar o pranto/ do índio sofredor, a aprender-lhe o idioma, / a ensinar-lhe amor."

A admiração não é somente sobre o que Padre Anchieta fez, mas principalmente como fez. Como um professor talentoso buscou novas formas de ensinar e cativar seu público? O historiador e sociólogo, Nelson Werneck Sodré escreve que o jesuíta preferiu descer à praça e conquistar um público mais amplo para transmitir seus ensinamentos. E lá ele permanece até hoje.


"Qual o seu mundo Chico Xavier?"

Com esta pergunta, o repórter José Hamilton Ribeiro começa a matéria, capa da edição de novembro de 1971 da extinta revista Realidade, com 16 páginas, várias fotos e pesquisas relacionadas ao espiritismo e aos estudos da atividade cerebral de Francisco Cândido Xavier.

O repórter e editor, Hamilton Ribeiro fez mais do que apurar dados e garantir a veracidade das informações passadas na reportagem, mais do que uma entrevista e uma matéria cheia de aspas. Ele esteve em Minas Gerais, acompanhou as sessões e esperou horas para conversar com Chico e conseguir sua mensagem psicografada. Hamilton Ribeiro fez parte da história, se tornou um personagem e sem sua vivência seria impossível descrever com a riqueza de detalhes, que faz com que o leitor se transporte até Uberaba, a Meca do espiritismo.


Vanessa Candia, em seu texto Antropocentrismo literário, explica que estes tipos de narrativas são inspiradas pela técnica norte-americana new journalism, e que o trabalho do jornalista era participar da vida do personagem, de maneira que o próprio repórter se tornava parte da história.

O próprio Hamilton Ribeiro, ganhador de três prêmios Esso, um dos pioneiros e que mais tarde também faria uma tentativa de reerguer a revista Realidade, como conta o texto de Candia, viveu na pele o new journalism enquanto cobria a Guerra do Vietnã. Sua matéria de maio de 1968, "Estive na Guerra" descreveu todo o seu sofrimento e a recuperação de parte da perna esquerda, perdida num acidente com uma mina terrestre.

Mas não é preciso tanto para usar a técnica que mistura jornalismo e literatura, afinal as revistas acolhiam bem estas narrativas. A importância da Realidade se deu, entre muitas outras coisas, pela presença de "um esforço de individuação textual, um franco exercício criativo com postura aderente a procedimentos de criação literária", como descreve Marcelo Bulhões, em Jornalismo e Literatura em Convergência. Certamente, em cada texto, o tom íntimo e único de cada repórter deixava-se transparecer, afinal cada vivência é única e cada percepção de um fato, local ou pessoa é íntima.

Não foi somente a escrita, que foi importada dos Estados Unidos, mas também os apelos visuais na diagramação de revistas e jornais tornaram a fotografia, presença marcante nas reportagens. Este, aliás, era o ponto forte da Realidade, que com fotos grandes reforçavam ainda mais o tema.

Na reportagem sobre Chico Xavier, as fotos fazem toda a diferença, a foto maior estampada na capa e outra muito parecida usada na abertura da matéria dão ao leitor a primeira impressão do personagem: a sua concentração. Porém, nas páginas seguintes aparecem a humildade, o humor, a simplicidade e a caridade, que se tornam claras através das fotografias e também do texto, o ti Chico (termo usado em Minas e na matéria), passa essa sensação.

No entanto, há no texto um elemento que do começo ao fim prende a atenção e desperta a curiosidade do leitor, o próprio repórter faz dois pedidos para pessoas distintas e os coloca entre os seiscentos pedidos do dia. A curiosidade do repórter, sobre a mensagem psicografada passa a ser a curiosidade do leitor.Este elemento do texto só é sanado no fim da reportagem, quando deixa claro que tudo é uma questão de fé.

domingo, 20 de março de 2011

O poeta da pedra

 As lembranças sempre presentes e os momentos imortalizados nas páginas do autor transformaram a pedra em um ser vivo, estagnado, em contemplação dos anos que se passaram e só deixaram as memórias.

“As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão./ Mas as coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão.” Com mais de 100 anos de história, dezenas de livros publicados e uma referência eterna, Carlos Drummond de Andrade acompanhou a história de sua época, observando fatos, pessoas e o mundo através de sua obra.

O eterno obstáculo, a pedra, a ser transposta pela repetição, pela dança através das palavras e pela criação de sons entre os versos deformaram os textos. Mesmo sem rima, mesmo sem forma, mesmo sem nada do que vira antes, a pedra se fazia presente. Sim, sempre haveria uma pedra no meio do caminho. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”.

O poeta da pedra vai além, indeciso com o obstáculo a frente não poderia simplesmente desviar e seguir seu caminho? Não, era preciso parar, escrever sobre o assunto e chamar a atenção, pois não se tratava só de uma pedra que obstruía seu caminho, era aquele momento de reflexão, que todo ser humano se vê em uma situação complicada e embaraçosa, quando é preciso tomar uma decisão.

Sutil e delicado, com o humor mineiro e a contradição em poesia e prosa, o Drummond de Itabira espalha pelas páginas o doce e o salgado com uma pitada de graça. Derrama seus pensamentos nas superfícies antes brancas e imaculadas do tampo da mesa, no guardanapo de pano ou no papel do pão da padaria da esquina, libertando e celebrando a vida. Suas palavras não nascem amarradas, elas são livres para saltar e se dissolver, e são puras, largas e autênticas, como o poeta.




Com os olhos encharcados e baixos, os óculos cansados se pendurando na ponta do nariz comprido e a mão espremendo a testa, o homem esvazia o cérebro da melancólica bossa nova e da inspiração das musas, trazendo às suas obras o ar carioca. Porém, a tranqüilidade das frases, a brincadeira com o tempo e humor típico não deixaram longe o tempero mineiro.

O senhor do modernismo, nada mais é que um homem escrevendo sobre e para o homem. O riso e a lágrima estão sempre prontos para se manifestar e revelar o sentimento nas páginas. Providas de humanidade e individualidade, as obras tornam-se mais belas e únicas. Dentro de suas características, sua poesia e sua prosa se tornaram universais, e nada mais são do que humanas. Já que antes de tudo, Drummond foi um homem que nasceu, cresceu e aprendeu que “Amar se aprende amando”.

“O tempo passa? Não passa? No abismo do coração./ Lá dentro, perdura a graça/ do amor, florindo em canção (...)// Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida.// (...) E nosso amor, que brotou/ do tempo, não tem idade,/ pois só quem ama escutou/ o apelo da eternidade.”
Com as velhas e quase desconhecidas palavras, além das recém-criadas, Carlos Drummond de Andrade liga verso a verso, os passos de uma caminhada de volta ao passado na pequena cidade natal mineira e nos tempos inocentes e tranquilos da infância. Estes temas são recorrentes em sua poesia, as lembranças revividas com os olhos de um adulto em nostalgia transbordam “Nos áureos tempos”, “Retrato de família” e “Idade Madura”. Desaprendem-se as lições da infância, reabriando a ferida com a ideia de família, daqueles que já se foram e do pó que restou. O drama humano das lembranças, dos bons momentos que duraram tão pouco e permaneceram vivos, por vezes esquecidos, mas constantemente relembrados.

Com os olhos atentos, experientes e sensíveis, o escritor demonstra toda a simplicidade da vida, seja em uma rápida visita de uma borboleta ou em uma flor que quebra a rotina. “Uma flor nasceu na rua!/ (...) Uma flor ainda desbotada/ (...) Sua cor não se percebe./ Suas pétalas não se abrem./ (...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” Presença garantida, a flor, com suas pétalas enfeitam os poemas do mineiro e dominam os versos de Drummond, anunciando a chegada do poeta e sua “A Rosa do Povo” de 1945.
“(...) A rosa do povo despetala-se/ ou ainda conserva o pudor da/ alva?/ É um anúncio, um chamado, uma esperança embora/ frágil, pranto infantil no berço? (...) um peito de/ artista que incha/ e uma rosa se abre, um/ segredo comunica-se, o/ poeta anunciou/ o poeta, nas trevas, anunciou (...)”.
Conforme observou Iumma Maria Simon, autora do livro “Drummond: uma poética de risco”, a obra foi dividida entre a fidelidade à poesia e a necessidade de torná-la instrumento de luta e de participação nos acontecimentos de seu tempo.

Foi o que o poeta fez, contextualizando sua obra, inspirada nas dificuldades e inseguranças da época. O medo constante, nos anos da Segunda Guerra e nos Anos de Chumbo, a pobreza e a fome, transformaram até mesmo os vizinhos em ameaça. Tudo era resolvido de forma brutal e definitiva, como a “Morte do leiteiro”, o trabalhador confundido com ladrão. A competição e o racionamento de comida, o “perigo vermelho”, e o governo desprovido, deixaram nas ruas milhares de desempregados e as intermináveis filas do feijão, que só fizeram aumentar as incertezas do futuro.

“Em verdade temos medo (...)/ E fomos educados para o medo. (...)/ Fiquei com medo de ti/ meu companheiro moreno./ De nós, de vós; e de tudo. / Estou com medo da honra.// (...) Por que morrer em conjunto?/ E se todos nós vivêssemos? (...)”
Sua prosa ritmada também não deixa para trás estes assuntos, em “Proibido fumar”, tudo se justificava em defesa dos direitos de liberdade ou defesa da pátria. A correria da cidade grande e a descrença no homem formaram “O medo e o relógio” e “Os homens são anjos?”, crônicas de assaltos, fobias e pessoas. No entanto, Carlos Drummond demonstra todo o seu amor pela humanidade como a destemida moça distinta que defende seus direitos de igualdade com um guarda civil, em “A moça deitada na grama” ou as surpresas que o romantismo pode trazer para o cotidiano entendiante em “Declaração de amor em outdoor”.

O infalível humor não poderia estar de fora nas palavras proseadas, nas brincadeiras com os costumes e hábitos dos homens contemporâneos que não sabem escutar, mas falam mesmo assim em “Ah, essa história de diálogo”. Não nos falta a saudosa presença de seu amigo e companheiro João Brandão que em muitos textos se apresenta como fiel personagem. Em a “Gota com humor”, as doenças de Brandão são tratadas com um novo olhar.

Ao fechar os livros para descansar os olhos depois de algumas páginas lidas, os sentidos se apuram e é possível ouvir um grito de verdade, um suspiro de angústia e um toque de dor. Porém, as sensações vão mais além, cada tema é uma reflexão e uma viagem, como a busca incessante pela prosa e pela poesia. O grande amor de Drummond pela língua se observa com a contemplação mais apurada das faces e significados das palavras.

Mais de perto, as mil faces secretas se tornam visíveis, mas cheias “(...) de melodia e conceito/ elas se refugiam na noite, as palavras./ ainda úmidas e impregnadas de sono,/ rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”As obras que nunca cansam, têm estilo e personalidade próprias, vagando entre os assuntos do cotidiano. Passear pelos seus poemas e crônicas até poder enxergar, sentir a história e os sentimentos, saboreando o prazer dos acontecimentos. Curtos e grossos, longos e disformes, suas criações não buscam rimas óbvias, não se limitam a elas, só seguem o pensamento de um poeta acostumado a viver em versos.